sexta-feira, 4 de abril de 2014

O golpe, os índios e nós




Publicado em O Tempo, 04/04/2014, p. 21
Beto Vianna, linguista

Em 1556, nosso primeiro bispo, de gostoso nome Sardinha, foi devorado pelos índios caetés. Sardinha combatia os hábitos selvagens adotados pelos colonizadores, como o tabagismo e o gosto pela carne índia (não à mesa, mas na rede). Comer o prelado autoritário foi, então, um ato político. E o revide veio duro. Anos depois, o governador-geral manda trucidar os caetés.
Ditadura, nunca mais. Mas entre o repúdio ao golpe e as patéticas manifestações saudosistas, temos mais do que nos envergonhar. É longa a história de opressão física e cultural das gentes da terra e daquelas trazidas à força da África. Recentemente, um blog indígena perguntou aos membros da Comissão Nacional da Verdade (que investiga os silêncios da ditadura): “por que só tratam de mortos e desaparecidos não indígenas?”. A CNV incluiu o tema na pauta, mas a pergunta gerou surpresa.
Além de um imaginário da resistência povoado de lamarcas e sequestros de embaixadores, custamos a reconhecer o caráter político da luta indígena pela terra e por seus modos de vida. E muitos de nós ainda cremos em um país “desenvolvido e integrado”, tom que marcou a política genocida do regime militar. Gente pelada falando língua diferente (se ainda fosse inglês, né?), fabricando o próprio utensílio e catando aquilo que come em imensas áreas “não produzíveis”, não combina com “crescimento” na cabeça de muita gente.
Em 1967, o general Golbery publica “Geopolítica do Brasil”, propondo a integração para o crescimento. No organismo Brasil, as áreas “despovoadas” (onde vive a maioria dos índios) são a parte doente, que exige doses concentradas do remédio. Logo depois, a ditadura lança o Programa de Integração Nacional, que incluiu a construção de uma malha viária no norte, “reservada (...) faixa de terra de até dez quilômetros à esquerda e à direita das novas rodovias para (...) se executar a ocupação da terra e adequada e produtiva exploração econômica”.
O plano caiu sobre o índio como a bíblica chuva de enxofre. Seus resultados são responsáveis pelo genocídio dos anos 70 e 80, com órgãos como o Incra e a própria Funai favorecendo o massacre de aldeias inteiras, assassinato, tortura, escravidão e outras violências praticadas contra, afinal de contas, pessoas, não é mesmo? As frentes de expansão (colonos, madeireiras, mineradoras) sujaram as mãos, bem como funcionários do governo. Os índios tentaram se defender, migrando ou peitando as invasões, e já denunciavam, desde então, a barbárie. Por que, então, não escutamos?
A descoberta de campos de concentração indígena em Minas Gerais, durante a ditadura, com uma lista de mortes e maus tratos de arrepiar os cabelos, mostra que o terror não foi apenas subproduto do “sonho desenvolvimentista”. É desprezo congênito por quem vive de modo diferente. Assim como repudiamos a volta da ditadura, é preciso prestar atenção nas situações de violência que os índios vivem, ainda hoje.

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