quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Cigarro dos prazeres, das paixões e da cruz


   Doidas e pretas fumaças a cada maço de branco careta
Beto Vianna
Prólogo
Este escrito nasceu por encomenda de meu terapeuta, como tarefa na guerra contra o (meu) tabagismo. Virou outra coisa, e pouco restou da finalidade original. Assim, o autor adverte: o artigo tem baixo teor de sanidade; compõe-se de cinco princípios ativos (subtitulados conforme o tipo); e não é recomendado para menores legais.
Prazer I - O ócio
Lá pelo século XV, depois de enxotarem árabes, judeus e ciganos de suas terras (ou transformá-los em cordeiros), os senhores católicos da Espanha se deram conta do tédio que seria sem a graça dos infiéis. Investiram então as terras, gentes e dinheiros roubados num empreendimento que iria revolucionar a indústria do lazer de alta classe: a finca, traduzível por quinta em Portugal, ou casa de veraneio no português em geral (daí a expressão contra o êxodo rural, “fincar o homem no campo”). As fincas de Toledo, estanciadas às margens sul do rio Tejo, ganharam o nome cigarrais, homenagem à cigarra, que cantava despreocupadamente no verão dos ricos (no fabuloso reino animal, a cigarra é a embaixatriz do ócio humano). Nos cigarrais toledanos se comia, se bebia, se fornicava (só não se trabalhava) e se punha fogo em uma novidade recém-chegada do Novo Mundo: folhas picadas de tabaco, enroladas em palha de milho. 
O tempo ainda não apagou o privilégio de uns poucos. Quem é pego com o cigarro na boca, tanto pode passar por sujeito classudo, se é um bon vivant, como por malandro, por inútil, se não é. E se para os ricos fazer fumaça é estilo de vida, para os demais de nós o cigarro é o merecido descanso entre um sufoco e outro, isso quando o sufoco não repousa no próprio ócio. Dois exemplos: no filme “Che”, de Soderbergh, guerrilheiros (incluindo o asmático Ernesto) pitam a cada intervalo dos esforços revolucionários em Sierra Maestra; e em outros filmes ou fora deles, o cigarro é a estrela principal entre os detentos, preenchendo o vazio cotidiano, lumiando as iguais memórias do cárcere. Num e noutro caso - no ócio chique das fincas ou no entre-deux do proletariado - as baforadas cigarrais tanto repõem quanto tiram energia. Enchem o pulmão de gás revigorante enquanto, como vampiras, sugam a vida de quem imaginava descansar, substituindo (e perpetuando) o cansaço obrigatório pela fadiga prazerosa.
Paixão I - O sexo
Outros momentos extenuantes da vida carnal combinam com a pausa para o pito. É o caso de Fred Astair e Ginger Rogers no filme “A alegre divorciada” (o título inglês é massa: “The gay divorcee”). Sem saber que se trata de uma mulher casada, Guy (Fred) apaixona-se por Mimi (Ginger), e o pós-clímax final da famosa sequencia de dança é o cigarro ingenuamente oferecido pelo macho e ingenuamente aceito e aceso pela fêmea, celebração icônica do merecido ócio ex coitus. Lembro-me de uma imagem antifumo, dessas estampadas nos maços: o casal na cama, a mulher faz cara de insatisfeita, e o homem, placidamente, fuma. Se a advertência era a da impotência masculina, lograram justamente o oposto: que mal há, para um decaído garanhão em busca de prazer, encontrá-lo no fiel cigarro e, não, na volúvel parceira?
O caso é que não há que acender o cigarro após o ato para pornografar o cigarro. A brasa já estava acesa durante. Cigarro é um canudinho na boca, uma chupeta (uma etimologia sugerida para cigarro, “cigarra”, é dada pelo formato tubular desse inseto; em catalão, “cigala”, o bicho, é um dos nomes do pênis). É por aí que as divas e dândis de antanho usavam piteira, um tipo de preservativo bucal, ou boquilha. E por isso Freud, temendo que seus boquetes caíssem na boca no povo, saiu-se com a famosa explicação: “Há momentos em que um charuto é apenas um charuto”. Ah, doutor! Sabemos que você sabe que não há momentos assim.
Prazer II - A mente
O tabaco é uma droga. Não, sem ofensa. No sentido amplo e químico do termo, droga é toda substância - natural ou engenhada - com propriedade de atuar na mudança (ou conservação) dos processos fisiológicos de quem a usa, pela via que for. Tal propriedade é o princípio ativo da droga. E em sentido restrito e costumeiro, tal princípio é psicoativo: atua no sistema nervoso de pessoas e outros animais. Como as demais drogas, as psicoativas podem ter mil fins: terapêutico, mágico, lúdico e até letal. O tabaco cabe como luva nessa lista enorme em que perfilam a coca, o cacau e o café, a Cannabis, a cana e a camomila, o aiuasca e o aguardente, a mimosa e o maracujá. 
Em pó para inalar ou picado para fumar, o tabaco tem tradição milenar de psicoatividade, testada e aprovada por centenas de povos índios das Américas. Mas, cá entre nós, droga, no comum e contemporâneo do termo, é aquela que, para o bem ou para o mal, faz a cabeça. E o tabaco faz. Tal como o mascador de coca dos altiplanos, o usuário do tabaco, além do doce deleite, recebe podres poderes, tornando-se mais sábio e mais destro, ainda que por breve período. Invertendo o tema do pito ocioso, cigarro é droga utilíssima na realização de tarefas que se beneficiam de uma mente mais desperta. Tarefas manuais, mas, sobretudo, sociais e emocionais: rir, sonhar, politicar, conviver, amar. Uma temática recorrente da droga, a dependência, deve um pouco de sua razão a esse prazer do usuário que, enquanto sob efeito do tabaco, se vê como uma pessoa melhor. Depois, é só acender mais um.
Paixão II - A alma
A mãe natural do cigarro, o tabaco, também tem propósitos elevados enquanto droga. Serve para conversar com os deuses (ou com Deus, se o fumante, não bastasse um vício, ainda é monoteísta). A relação das pessoas (e talvez outros animais) de quase todas as culturas com o divino não é direta: precisa de um suporte, um veículo, e esse veículo é a droga. Aqui amplio a noção de droga, pois o crucial não é a substância, mas o efeito no organismo, na percepção. Um canto gregoriano, uma multidão gritando em uníssono no Mineirinho ou um cigarro partilhado numa roda de índios Sioux conduzem a divindade para perto ou transportam o ouvinte, gritante ou fumante para longe, o que dá no mesmo, pois o resultado é o estado alterado, não exatamente da mente, mas (desculpem-me o termo controverso) da alma.
Se religião, dizem, tem o étimo latino religare, arrisco dizer que o papel espiritual do cigarro é reacendere. A cada encandecer do fumo, criam-se as condições emocionais e sensoriais da iluminação. A cada tragada, o torpor da droga dispõe o corpo para o transe, e a cada baforada, sobe a fumaça que baça a vista, propiciando aquilo que, no contexto espiritual, é paradoxalmente chamado visão. Mesmo se as condições plenas só se dão em culturas que fumam tabaco cerimonialmente, não devemos negligenciar o fato de que lumes e fumos são usados de forma muito mais católica através dos costumes, como os incensos, que inebriam, ou as velas, que iludem. Ou o consumo, nem tão simbólico assim, de veículos como o pão ou o vinho. Como nos ensinou a lagarta de Alice, o filtro cultural esconde as portas para o sobrenatural, potencialmente abertas por obra e graça de cada cigarro fumado.
A Cruz I - Os corpos
Nem tudo no cigarro são flores, nem folhas. A nicotina, tão publicamente difamada é, de fato, culpada da psicoatividade do tabaco, e dá o nome genérico da planta, Nicotiana tabacum. As nicotianas são da família Solanacea, nomeada segundo o latim solari (consolar, aliviar), justo pela tradição narcótica das plantas da família, como a beladona e a mandrágora (além de drogas como o tomate). Mas o cigarro nosso de cada dia, que produz bilhões de bitucas nos bueiros e bilhões de boatos nos botecos, está a anos luz das cândidas folhas de nicotiana enroladas em palha de milho para servirem de ócio, gozo ou fé da indiada ou dos cigarraleiros toledanos de 300 anos atrás.
No progressista século XIX, apogeu do mundo livre, empreendedores da França, Inglaterra e EUA descobrem as delícias de fabricar e vender cigarros para todos. Essa indústria, como tudo que é belo e generoso no mundo do capital, vem evoluindo desde então, aperfeiçoando-se em manter sua clientela fiel. À narcótica nicotina juntaram-se centenas de substâncias letais, como os gases tóxicos e os metais venenosos. E a grande sacada comercial do cigarro não é o coquetel mórbido, mas a sua engenharia inteligente, uma máquina finamente desenhada para decuplicar a psicoatividade da nicotina e assegurar a dependência do usuário. Por exemplo, no fumo está a amônia, que apressa a vaporização da nicotina e a sua chegada ao cérebro, aumentando e antecipando o prazer. No papel estão os anéis de óxido de titânio, que liberam mais nicotina ao acelerar a queima (essa desacelera no intervalo entre os anéis, dando sobrevida ao cigarro). Uma pena (mas o mundo tem que girar) que a amônia agrave o enfisema e a bronquite do fumante, e o óxido de titânio cause tosse e vermelhidão e inchaço na pele e nos olhos.
Subtitulei a cruz - a única cruz - do cigarro como “Os corpos”, assim no plural, pois não acho que o único pesadelo do cigarro, embora suficientemente trágico, seja a deterioração do organismo. Penso, igualmente, na putrefação das relações humanas. O dependente químico contemporâneo é um ser moralmente abjeto, que fede um fedor mais forte que o da fumaça que exala, pois não tem força de vontade, hombridade ou a decência de se ver livre de um vício que queima a sua reputação. Como sou um desses zumbis sociais, peço ao leitor que não conclua, daí, que meu maior desejo é inspirar piedade. Não, não. O que mais quero (ao menos por enquanto) é acender outro cigarro.
Publicado em O Cometa Itabirano, jul/2012 e na Pittacos 







sexta-feira, 29 de junho de 2012

Van Helsing e o cocô da verdade


Beto Vianna

Dois dos livros que mais gosto na praia da ficção foram escritos por cidadãos britânicos. Nisso eu posso ser e até fui bem patrulhado como um chauvinista de mente incorrigivelmente colonizada, e faço até gosto, pois noves fora a literatura, meus queridinhos na música são ingleses (aquela banda do George Harrison) e em outro terreno dos passatempos ocidentais – a ciência – sou darwinista de carteirinha. Mas não é só pelo sotaque britânico que minha confissão literária pode render apedrejamento. As obras de que estou falando são Frankenstein, de Mary Shelley, e Drácula, do irlandês (e, não, inglês, vá lá) Abraham Stoker.
Até que o livro de Shelley nem é problema. Primeiro, porque a menina tem pedigree. É filha da filósofa feminista Mary Wollencraft, esposa do finíssimo poeta Percy Shelley e amigona de Lorde Byron, outro monstro sagrado da pena inglesa, guru do movimento romântico. E Shelley não era dama de companhia dessas feras. Escrevia muito e escrevia bem, ensaísta, editora e tão ou mais politicamente ativista que a mãe. E a própria obra mencionada, Frankenstein, tem seu lugar ao sol na lista de boas leituras do mundo.
Por falar em Shelley (o marido) e Byron, é bem conhecida a história (tem filme e tudo sobre isso, um filme bem doidão: “Gothic”, de 86) em que os dois, mais o ítalo-inglês John William Polidori, passaram uma bizarra noite na companhia de Shelley (a esposa), e desse rendezvous opiácio, com a borbulhante colaboração do láudano, brota o argumento de Frankenstein. Polidori é outra figuraça. Foi considerado culpado por introduzir o tema “vampiro” na literatura ocidental, com um conto seu chamado, adivinhe só, “The Vampyre”. E aí está a deixa pra pularmos pro Drácula.
Bram Stoker não tem a proeminência, o reconhecimento, as qualidades e muito menos o sangue azul literário de Shelley. Escreveu muita coisa aqui e outras ali, mas suas melhores pontuações no currículo (fora, é claro, Drácula) são ter se casado com a ex-namorada de Oscar Wilde, ter sido amigo do ator Henry Irwin e ter dirigido o teatro londrino Lyceum, de propriedade do próprio Irwin. Dizem que a figura de Irwin inspirou a criação da figura do Conde Drácula. Sim ou não, o certo é que o cara é a cara cuspida do Christopher Lee.
Sobre Drácula, só posso dizer o seguinte: conheço bem a história do Conde, do caçador de vampiros Van Helsing e do casal atormentado Jonathan e Mina Hacker desde pirralho (sempre me afeiçoei a esse nobre vampirão – no sentido platônico, que fique claro), mas só agora, no alborecer dos meus quarenta, me dispus a ler, de fato e de cabo a rabo, o volume. E até onde eu tenha algum crédito para avaliar méritos literários, tem mesmo muita coisa melhor por aí, mas não é por aí que eu gosto da obra. O buraco – e a razão de ser deste texto – é em outro lugar.
Graças a Hollywood, e, mais tarde, a toda uma indústria do entretenimento light ocidental – da Família Addams até à incrível turma do Penadinho -, Frankenstein eDrácula viraram aquilo que nunca foram. O livro de Shelley nãé sobre um cientista maluco irresponsavelmente brincando de Deus, e o texto de Stoker nãéa vitória do amor cristão sobre as forças sensuais do mal. Definitivamente, não, e desafio para um duelo (de verdade, com arma escolhida e tudo) quem, nesse ponto, insistir no meu contrário.
Frankenstein leva às últimas consequências (emocionais, pedagógicas, políticas) a proposta do doutor Erasmus Darwin (avô de meu ídolo Charles) de que a vida é animada por um fluxo energético (a “eletricidade animal”, de Luigi Galvani), e, ainda assim, deve ser cuidada – amada – para a vida realizar-se plenamente como vida.
Drácula também tece considerações divertidas sobre o que é ser ou estar vivo, mas esse é o subtema mais ingenuozinho da obra. O livro dá asas à pilhéria de Stoker com o status auto afirmado da ciência, num ponto absolutamente fundamental: o lugar da verdade. Stoker, a par de suas diatribes literárias, formou-se em matemática no famoso Trinity College, de Dublin (frequentada por outro irlandês bamba, Jonathan Swift, cuja obra, Gulliver, também teve o triste destino de ser ensalsichada pela cultura da irrelevância). Regozijo-me em saber que o matemático Stoker não estava alheio à maior e mais longeva história de mistificação de uma instituição, desde que Platão fundou a Academia: os cientistas são uma raça de pessoas especiais que apontam para a verdade.
É curioso que Shelley e Stoker tenham escolhido, para heróis científicos de suas obras, não súditos da coroa britânica, mas, respectivamente, um suíço e um holandês. Nietzsche costumava gozar a cara dos ingleses dizendo que eles são comerciantes, nada mais que comerciantes. Pode ser, mas também deve ser que, para ser um bom comerciante, é preciso estar preparado para seduzir o freguês com algo melhor que a própria mercadoria. Shelley (post facto, é claro) e Stoker rendem-se ao deboche de Nietzsche ao buscar em terras de fala (e, portanto, mente) mais germanizada, a personificação romântica do amor genuíno pelo explicar as coisas do mundo. Mesmo Van Helsing, holandês, é caracterizado noDrácula com forte sotaque germânico e cheio de expressões alemãs (“Mein Gott!”) talvez para afastá-lo um pouco de Amsterdã, afinal, também terra de comerciantes (em que outro lugar do mundo putas e maconheiros são vistos por tradicionais turistas mineiros de toda parte, do Brasil inclusive, como pitorescos atrativos locais?).
O suíço Victor Frankenstein da obra de Shelley está longe de ser um Hugo A-Go-Go, vilão de Batfino. Sim, há loucura em Frankenstein, mas ela transita por seu amor pela namorada, pelos parentes, pelos amigos, tanto quanto em seu amor por explicar os fenômenos do universo (e um amor não exclui, mas alimenta, o outro). O sucesso e a tragédia científicas de Frankenstein ao criar “o monstro” refletem a diferença de perspectiva sobre a “positividade” da ciência que existe entre a criatura Victor Frankenstein, leitor de Galvani, e a de sua criadora Mary Shelley, leitora de Erasmus Darwin. E por falar em Batfino, voltemos ao cientista de Drácula.
Abraham Van Helsing ganhou o prenome de seu criador, Stoker, talvez porque o autor o considerasse um grande sujeito. Também acho. Van Helsing é chamado à Inglaterra por seu ex-discípulo, John Seward, para ajudar no caso da misteriosa doença de Lucy Westenra, uma patricinha enricada, cobiçada por três personagens do livro (o Dr. Seward, inclusive). Dr. Seward é um cientista prototípico, na visão de Bram Stoker. Não um cientista louco, longe disso. De fato, o contrário disso. Ele dirige um asilo para doentes mentais, e é fera na craniometria, muito em voga no século 19, um tipo assim como “O Alienista”, de Machado de Assis.
Coisas impressionantes ocorrem com a bela Lucy, mas é preciso que tais “impressões” se avolumem até o limite do tenebroso para que o positivo Dr. Seward se dê conta de que se trata de um caso, bastante corriqueiro, se me permitem colocar assim, de vampirismo. Se é mesmo de evidências que vive a ciência, como, com tantas delas à disposição, o calejado cientista não se dá conta do que realmente acontece? Drácula está repleto de puxões de orelhas nessa confiança arrogante, nesse privilégio institucionalizado da detecção da verdade. Reproduzo aqui a leve palmada aplicada pelo professor Van Helsing em seu cético aluno:
Você é uma mente sagaz, meu caro John. Sempre raciocinou com clareza e a sua mente é obstinada. Mas costuma frequentemente prejulgar as coisas. Não espera que seus olhos vejam e seus ouvidos ouçam, e tudo aquilo que diuturnamente acontece ao redor de sua própria vida parece não lhe despertar o mínimo interesse. Não consegue admitir que ainda existem muitas coisas que sua percepção não compreende, todavia elas estão aí”.
Sim, elas estão aí. Não é à toa que, apesar de enaltecer a bravura e a devoção cristã de todos os heróis da história que lutam contra o vampiro, é ao próprio Conde Drácula que Van Helsing concede os melhores elogios, de natureza, digamos, intelectual. Drácula é “celebrado como o mais sábio, o mais destro e o mais bravo dos filhos das terras situadas além das densas florestas”. O que torna Drácula elogiável como cientista – no melhor do termo, para Van Helsing – não são seus incríveis poderes malignos, mas os séculos de experiência aguçando suas possibilidades de entendimento muito mais que seus caninos (como naquele gracioso refrán: “más sabe el diablo por viejo que por diablo”). Van Helsing alerta sobre o perigo de alguém assim, criado e experimentado nas antigas terras dos magiares, dos mongóis, dos hunos, “na China, nos mais longínquos rincões da Terra”, fazer das suas logo na arrogante Inglaterra, terra que não apenas engatinha na arte do querer saber, mas até se esquiva disso: “Quem dentre nós teria sequer admitido tal possibilidade, em plena vigência do século 19, a científica era dos céticos e dos adeptos dos fatos comprovados”? Pergunta o professor.
Hoje, e, digamos, no Brasil, não estamos provavelmente às voltas com o perigo de um iminente ataque de vampiros. Mas, acredite, hay outras bruxas soltas por aí. Tal como Shelley e Van Helsing (se posso misturar criadores e criaturas), penso que muitas das querelas atuais que envolvem nossas redes de conversas são vampirescamente infectadas por um olhar injusto sobre o afazer científico. Não tenho a mínima esperança (ou receio) de que os cientistas sejam exímios caçadores de verdades, mas isso não deve ser motivo de desespero pra ninguém.
Debates como os das “guerras científicas”, aquelas que colocam os cientistas de laboratório (ou uma caricatura deles) às turras com os cientistas das humanidades (ou uma caricatura deles) podem ser divertidos para fazer frisson na mídia, mas estão assentados em uma disputa vazia. Nem a Ciência com “c” maiúsculo – os físicos, os biólogos, alguns linguistas – tem a missão sagrada e solitária de desvendar um mundo independente das experiências partilhadas por estes cientistas, nem as Humanidades com “H” maiúsculo – os antropólogos, os psicólogos, alguns linguistas – têm a missão sagrada e solitária de fazer sociologia das outras ciências independente das experiências partilhadas por estes cientistas.
Outro debate que já deu o que tinha que ter dado há séculos (Drácula deve se lembrar dele) é a disputa pelo fogo prometeico da verdade entre a ciência e a religião. Ou entre as ciências e as religiões, se preferir. Ele não se esgota, e até mesmo, recentemente, tem se renovado, exatamente por nada ter de religioso ou científico. Trata-se de uma questão política. O fenômeno da evolução é uma de suas vítimas preferidas, principalmente na sua versão mais tragicômica (e chauvinista, pois finge que a evolução existe para o humano): a humanidade é descendente de macacos ou foi criada por um deus? Se você prefere a primeira resposta, saiba que ela não é resposta para nada. Evolução não é uma teoria que explica coisa alguma: é um fenômeno que deve, como tal, ser explicado pelos cientistas. E se você optou pela segunda resposta, ótimo. Mesmo assim, isso nada tem a ver com o domínio da ciência, mesmo se for a mais absoluta verdade. Isso porque a ciência não serve pra dizer verdades, mas para explicar os fenômenos tal como entendidos pelos cientistas. Dizer que um deus criou alguma coisa pede (cientificamente falando, é claro), ao menos, que se explique como isso aconteceu. Se esse debate absurdo continua, é porque certos grupos políticos – em especial, a direita evangélica norte-americana, e suas filiais mundo afora, especialmente na África e na América Latina – esperam ganhar espaço institucional (leia-se: almas, poder e grana) vendendo asnices como a “teoria do criacionismo científico” e a “teoria do design inteligente”. Sinto dizer, pra quem gosta de comprar essas bobagens, que elas nada têm de teoria, nada têm de científico, nada têm de inteligente, e são criações medíocres com péssimo design.
Termino este desabafo literário-científico com um exemplo de onde, de fato, eu penso residir a verdade.
Os coprólitos (palavra do grego: pedra de cocô) são fezes de humanos ou outros animais (é claro), no mais das vezes fossilizadas. Por sua conservação, podem oferecer valiosos vestígios físicos, fisiológicos e até moleculares, seja de organismos que viviam nos intestinos do indivíduo defecador, seja do próprio animal que produziu a agora petrificada cagada. É difícil achar uma fonte tão rica de informações sobre o passado quanto os coprólitos. Por exemplo, examinando um cocô desses dá pra conhecer ao menos em parte a dieta de um animal morto há milhares ou milhões de anos, os locais por onde ele transitava (comparando o paleoambiente da região com as amostras do coprólito), os animais com quem ele se relacionava, e se ele tinha vermes ou outras doenças.
Devia haver um ditado chinês para isso, do tipo: “se você quiser conhecer a verdade, examine detidamente toda merda que encontrar, mesmo que ela esteja endurecida há séculos”.

Publicado no jornal O Cometa Itabirano (ed. 353, p. 12-14)

segunda-feira, 26 de março de 2012

Pero las hay

Beto Vianna
Publicado em O Tempo, 23/03/12, no debate: “Formas preconcei-tuosas, como as que se referem pejorativamente a ciganos e judeus, devem ser retiradas dos dicionários?”

 
Em seu “Os Estatutos do Homem”, Thiago de Mello diz: “Fica proibido o uso da palavra liberdade, a qual será suprimida dos dicionários e do pântano enganoso das bocas”. Para o poeta, que tem por ofício a palavra, liberdade é algo tão fundamental no relacionamento humano, que ultrapassa o registro escrito ou falado. É para ser vivido. E o que dizer quando o destino da palavra é ferir, humilhar, degradar a convivência?

Se atentarmos unicamente à função descritiva do dicionário, sou contra banir insultos, bem como devem ser mantidas a pornografia, a desgraça e a blasfêmia, doam a quem ouvir. Mas essa é só metade da história. O que me incomoda é a gritaria contra qualquer coisa que cheire a “politicamente correto”. Renomados formadores de opinião, gente que deveria ter mais cuidado com o que fala, usam suas poderosas tribunas midiáticas para denunciar a patrulha linguística, a chatice e a hipocrisia (da esquerda, por supuesto) que quer intervir na liberdade inalienável do indivíduo de ferir, de humilhar, de degradar. Compare essa liberdade com aquela acima, do poema de Thiago de Mello. Nem de longe é mesma palavra.

Quem propôs suprimir do dicionário definições insultuosas, ingenuamente se esquece de que o dicionário opera em um nível diferente (paralelo e, não, acima) de nossas escolhas vocabulares. Mas os que utilizam esse absurdo pontual para denunciar um complô linguístico do Grande Irmão prestam um desserviço pernicioso à convivência entre as pessoas, à normalização da diferença, que é o esforço que, enquanto humanidade, precisamos continuamente fazer.

A linguagem é um espaço de mudança. Palavras mudam quando mudamos de desejo, de preocupação. E o inverso também é verdadeiro: ao decidir usar certas palavras ao invés de outras, contribuímos para que nossos desejos e preocupações mudem. Muitos insultos dirigidos a negros e índios no auge da colonização, nos séculos XVII e XVIII, caíram em desuso e não são mais dicionarizados. E antigo não quer dizer pior. Ciganos e judeus eram mais bem tratados na Europa muçulmana de mil anos atrás que na Europa cristã dos anos 1930. As mulheres têm uma história ainda mais permanente e internacional de depreciação verbal, um vocabulário ofensivo que só em parte soa impossível aos ouvidos de hoje. E aos dicionários.

Em vez de denunciar um improvável expurgo das nossas palavras, devíamos (se queremos que liberdade seja algo “vivo e transparente”) nos esforçar bravamente, noite e dia, para que as palavras que ferem, as palavras que humilham, que degradam, desapareçam do pântano enganoso das nossas bocas. Estaremos, assim, contribuindo para melhores edições futuras, mais solidárias e conforme nossas escolhas, do Pai dos Burros.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Carnaval e praia em Beagá

Beto Vianna

Belo Horizonte, ou pelo menos suas classes muito médias, ávidas de arte e desfrute vanguardeiros, há muito se entristece de não ser nem uma coisa nem outra: de não ser o orgânico interior de Minas, fonte legitimadora da cultura da capital, e de não ser o Rio, Meca dionisíaca de mar, sal, sol e samba.

E há muito o carnaval é época de reacender essa tristeza. Cidade vazia dos moradores que rumam em bando para a rodoviária, e dali para o interior familiar, onde se revê a parentada da roça, onde se foge do carnaval (e da tristeza?) acampando e cachoeirando Minas afora, onde se pula o raizeiro carnaval de rua, engrossando os cordões da folia, os blocos sujos, os blocos caricatos, entoando as marchinhas de outros carnavais. Há aves mineiras migratórias que viajam pro Rio, brincando, na terra dos outros, o maior espetáculo da Terra. Há as que revoam para as praias do divino Espírito Santo, litoral sabidamente mineiro, se não geograficamente, ao menos de corpo, sundown e alma.

A Belo Horizonte do ano de 2011 (com antecedentes importantes nos anos anteriores, é preciso dizer) viveu uma reviravolta em tudo isso. Sim, a rodoviária continua se abarrotando de gente no carnaval. E agora de gente chegando quase tanto quanto de gente saindo. A cidade reencontrou o carnaval de rua, reencontrou o samba, a música, a alegria. E nem foi preciso beber lá fora (na folia carioca) ou aqui dentro (no interior festeiro): Belo Horizonte renasceu para uma cultura que sempre teve. Pois mineiro, apesar do devaneio diferentista divulgado por nossos políticos e literatos, é, antes de tudo, brasileiro. E Belo Horizonte, quando resolve parar de se esconder atrás das montanhas, é uma cidade do Brasil.

A cidade jardim reencontrou as marchinhas, da mesma cor e sabor daquelas entoadas nestas terras há tanto tempo (nos anos 30? 40?), a crítica social, a crítica política, de costumes (e que costumes!), o humor mordaz e a zombaria matreira, ingredientes básicos, tanto quanto o samba e a poesia, do grito de carnaval. À tradicional família mineira, aos nossos escorregadios governantes e acochambrados parlamentares, à nossa valorosa polícia militar, nada resta a não ser escutar o dedo carnavalesco apontando as mazelas: o folião mascarado desmascarando um sistema que dá motivo pra tanto riso.

Fantasiada, ou com pouca ou nenhuma roupa, lá veio Belo Horizonte descendo a ladeira, e as praças foram do povo, como o céu é do avião. Nem adiantou cercar, nem adiantou cercear. Ou adiantou, sim, pois quanto mais as fatias tacanhas da nossa sociedade fantasiaram motivos pra murchar a festa, só fizeram aumentar o cordão (tem cada vez menos gente se guardando pra quando o carnaval chegar): viraram musas. Como alguém deve ter dito por aí, quando o espaço público é um privilégio, ocupar é um direito. No auge da mais quente estação, só faltava Belo Horizonte ter praia. Não falta mais.

Publicado em O Tempo, 15/02/12

.